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O que é terapêutico?

  • Foto do escritor: Guilherme Alexmovitz
    Guilherme Alexmovitz
  • 14 de mai. de 2020
  • 10 min de leitura

Atualizado: 12 de jan.

Enquanto psicoterapeuta, uma pergunta sempre me convoca ao pensamento: o que é o terapêutico? Tal questionamento pode soar estranho para aqueles que, nos dias de hoje, inseridos em um mundo já descoberto e dominado pela ciência, escutam um técnico se perguntar sobre a essência de sua produção. Contudo, aquilo que é terapêutico encontra-se na grade técnica das universidades? Aquilo que há de terapia nos mais diversos campos técnicos – psicoterapia, fisioterapia, massoterapia, imunoterapia, radioterapia, etc – restringe-se somente a um produto da técnica tal qual o concebemos hoje ou nos referimos a algo mais? Podemos encerrá-lo em uma fórmula matemática, como a+b=terapêutico? Afinal, o que há de comum em processos tão diferentes como os mencionados acima? O que é o terapêutico da terapia? Seria aquele que domina a técnica da terapia o terapeuta?


Para responder a todas essas perguntas sugiro ouvir o que a palavra terapêutico tem a dizer em sua essência, cuja origem situa-se na língua grega. Sabe-se que o termo terapia vem do grego θεραπεία (therapeia), mas mais do que recorrer ao dicionário etimológico, devemos repensar esse termo de dentro do próprio pensamento grego, tão dentro quanto a distância e os séculos que nos separam permitem, para que então possamos nos aproximar da origem de sua alcunha. Há muitos fragmentos e textos da Grécia Antiga que resistiram até os dias de hoje e que nos permitem tentar compreender como o pensamento grego pensava o terapêutico.


Por exemplo, em Metafísica (981a20-4) Aristóteles afirma:

"A experiência é conhecimento dos particulares, enquanto a arte é conhecimento dos universais; ora, todas as ações e produções referem-se ao particular. De fato, o médico não cura o homem a não ser acidentalmente, mas cura Cálias, ou Sócrates, ou qualquer outro indivíduo que leve um nome como eles, ao qual ocorra ser homem. Portanto, se alguém possui teoria sem a experiência, e conhece o universal, mas não conhece o particular que nele está contido, muitas vezes errará o tratamento (therapeias), porque o tratamento (therapeuton) se dirige, justamente, ao particular."

Assim como no uso corriqueiro do termo terapia, Aristóteles parece situá-lo aqui sobre o terreno da saúde ao citar o tratamento de alguém, como, por exemplo, o oferecido a Cálias e Sócrates. Contudo, mais do que um terreno de aplicação – saúde – e uma possível tradução do termo em questão – tratamento – o filósofo parece nos dizer algo mais. Aristóteles afirma que ‘o therapeuton se dirige, justamente, ao particular’. A afirmação carrega um peso no raciocínio do filósofo, que parece querer opor o conhecimento universal à práxis humana. Ao dar uma direção para essa therapeia, termo que ainda carece de maiores esclarecimentos, ele assim o retira do ventre do conhecimento científico, universal por natureza, e gesta-o na singularidade da experiência prática da vida. A therapeia, portanto, começa apontar-nos uma direção: a experiência particular.


Ainda em Aristóteles encontramos (Ética a Nicômaco. X.1178b35):

"Mas o homem feliz, como homem que é, também necessita de prosperidade exterior, porquanto a nossa natureza não basta a si mesma para os fins de contemplação: nosso corpo também precisa gozar de saúde, de ser alimentado e cuidado (therapeian)."

Nosso corpo precisa de therapeian, cuidado. Novamente o filósofo refere-se ao terapêutico dentro de um contexto de cuidado, porém não mais situado especificamente dentro da saúde, uma vez que o menciona como algo adicional, como um cuidado tal qual o da saúde e da alimentação. Mas a que tipo de cuidado despendido ao corpo, que não somente os necessários para o gozo da saúde e da alimentação Aristóteles se refere? Seria o estético? O filósofo não se prolonga e nos deixa com a pergunta em aberto. Porém, talvez ainda mais enigmático que este tipo de cuidado seja o seu destino e aquele que se destina no uso do terapêutico. Podemos inverter a frase para torná-la mais evidente. ‘Nosso corpo também precisa gozar de saúde, de ser alimentado e cuidado (therapeian) para os fins de contemplação’. Aparentemente, sem tais cuidados, o homem não poderia destinar-se à contemplação. Mas porque tais cuidados se destinariam a isso? E mais: qual é a relação entre felicidade e o homem que precisa de alguns cuidados para alcançar a contemplação? Porque o homem feliz e o cuidado se destinam à contemplação? Ou seria a felicidade, tema fundamental em Ética a Nicômaco, o destino que requisita do homem a therapeia – cuidado, tratamento – e a theorein – contemplação?


“A melhor forma de vida consiste em honrar a deus e contemplá-lo” (Ton therapeuein kai theôrein), afirma ainda Aristóteles nesse breve trecho de Ética a Eudemo (VIII.2, 1249b20f). Novamente o filósofo coloca lado a lado, como atividades paralelas, mas ainda assim relacionadas, o therapeuein, no caso traduzido por honrar – em outros textos encontramos também a tradução ‘servir’ – e theôrein, contemplar. Porém, tal honrar ou servir não são empregados pelo filósofo para designar qualquer forma de honra ou serviço; pelo contrário, therapeia se destina a theon, a deus, ao divino. Não se trata aqui do conceito judaico-cristão de Deus, criador de todas as coisas – embora o pensamento aristotélico tenha exercido grande contribuição na teologia ocidental – mas, sim, do deus grego, que mais se aproxima de um superlativo do conceito grego καλοκαγαθία (kalokagathia), derivado de καλός καi αγαθός, kalos kai agathos, que significa o belo e o bom, ou o belo e o virtuoso. Nesse sentido, therapeia, honrar ou servir a deus significa algo como buscar alcançar o sumo bem, ou fazer jus a esse sumo bem. Tal compreensão parece ficar mais clara em Ética a Nicômaco, quando Aristóteles afirma que todas as ações e produções, conhecimentos e trabalhos humanos visam algum bem, mesmo que difiram entre si sobre o bem visado. O filósofo vai além, e afirma ser esse fim, esse sumo bem comum a todos, a felicidade, e identifica o bem viver e o bem agir como o ser feliz. Essa felicidade, por consequência, não seria alcançada por um viver e um agir qualquer, como o prazer carnal, a riqueza, ou o reconhecimento, mas, sim, através do exercício das virtudes, que por sua vez, necessitaria de uma vida contemplativa para ser alcançada.


O filósofo continua em Ética a Nicômaco (1169 b 33, 1176 b 26):

“(...) a atividade da razão, que é contemplativa, tanto parece ser superior e mais valiosa pela sua seriedade, como não visar a nenhum fim além de si mesma e possuir o seu prazer próprio (o qual, por sua vez, intensifica a atividade), e a auto-suficiência, os lazeres, a isenção de fadiga (na medida em que isso é possível ao homem), e todas as demais qualidades que são atribuídas ao homem sumamente feliz são, evidentemente, as que se relacionam com essa atividade, segue-se que essa será a felicidade completa do homem, se ele tiver uma existência completa quanto à duração (pois nenhum dos atributos da felicidade é incompleto).

Mas uma tal vida é inacessível ao homem, pois não será na medida em que é homem que ele viverá assim, mas na medida em que possui em si algo de divino; e tanto quanto esse elemento é superior à nossa natureza composta, o é também a sua atividade ao exercício da outra espécie de virtude. Se, portanto, a razão é divina em comparação com o homem, a vida conforme à razão é divina em comparação com a vida humana. Mas não devemos seguir os que nos aconselham a ocupar-nos com coisas humanas, visto que somos homens, e com coisas mortais, visto que somos mortais; mas, na medida em que isso for possível, procuremos tornar-nos imortais e enviar todos os esforços para viver de acordo com o que há de melhor em nós; porque, ainda que seja pequeno quanto ao lugar que ocupa, supera a tudo o mais pelo poder e pelo valor.”

A contemplação em Aristóteles parece possuir um caráter fundamental na busca pelo sumo bem, nomeado por ele de felicidade. É a contemplação a atividade ela mesma que permite vislumbrar para si o bem agir e tornar, assim, o homem feliz. Tal vida contemplativa refletida nas ações humanas permite que o homem possua em si algo de divino, ao ‘enviar todos os esforços para viver de acordo com o que há de melhor em nós’, ou seja, buscando a kalokagathia, o bem e o virtuoso, ou, em outras palavras, honrando e servindo a deus. Therapeia, nesse sentido, parece nos apontar para um esforço, para um modo específico de ser em que nos colocamos à serviço do ‘melhor em nós’, dessa felicidade que não se limita aos prazeres do corpo, da riqueza ou do poder, mas que nos permite superar nossa própria natureza. É desta forma que Aristóteles parece relacionar felicidade, therapeia – tratar, cuidar, honrar e servir – e contemplação.


Podemos repensar o termo therapeia agora de outro lugar, com suas raízes gregas mais expostas, embora o estranhamento oriundo de nosso pensar moderno ainda possa se colocar como obstáculo para essa reflexão. Vale ressaltar que o objetivo de resgatar da origem grega o sentido dessa ou daquela palavra não está em diminuir a importância de todo o pensamento desde então, como se os gregos fossem os detentores do sentido do mundo, mas se no inverno não conseguimos distinguir as árvores por sua folhagem, faz-se necessário estudar seu tronco e suas raízes para identificá-las.


Até então podemos compreender o terapêutico como uma forma de tratar o outro de maneira específica, ainda que dentro do âmbito da saúde, levando em consideração a singularidade do indivíduo tratado e não apenas um conhecimento científico, universal, ou fórmulas prontas de tratamento. Podemos compreender também enquanto um cuidado não apenas dispensado ao outro, mas a mim mesmo, em que, cuidando de mim, eu me coloco em condições que me permitam contemplar a felicidade – o que é bom e belo; o divino – e, contemplando-a, eu possa honrá-la e me colocar à serviço dela, em um esforço que se direciona para o melhor de mim. Tais sentidos contemplam isso que chamamos de terapêutico, embora sem encerrá-lo em uma equação; e já permitem um diálogo mais fundamentado com a forma como lidamos com o terapêutico nos dias de hoje.


Atualmente, quando um indivíduo busca algum tipo de terapia, seja ela qual for e pelo motivo que for, em geral, espera-se que ele se coloque em uma postura de submissão ao tratamento. E como poderia ser diferente? Vivemos uma época em que os estudos técnicos e seus feitos dominam quase por completo a natureza. Sob tal domínio e enquanto meros objetos de estudo da ciência tecnicista, o que nos resta é apenas submissão, é sermos dominados. Contudo, esse tipo de tratamento técnico ao qual costumamos nos submeter, por ser universal e não particular, não passa de um tiro no escuro e, caso acerte algo, o faz por acidente. Reconheço que essa afirmação aristotélica possa soar sem sentido nos dias de hoje, uma vez que o campo das ciências da saúde possuam feitos dos mais visíveis e verificáveis, como a criação de vacinas para os mais diversos vírus que, antes, dizimavam povos inteiros, ou o desenvolvimento de técnicas cirúrgicas que permitem que pessoas com problemas cardíacos sobrevivam a infartos e outras enfermidades do coração, por exemplo, que antes seriam fatais. Tudo isso é verificável e não soa como tiros no escuro, ou ao menos não soam como tiros que acertam o vazio. Creio que tudo, porém, depende do que entendemos por acerto. Pois é inegável que há uma grande conquista no domínio da natureza, contudo, se enquanto técnico-terapeutas – ou melhor, tecnoterapeutas – submetermos o outro a mero objeto de meu domínio, deixamos de lado outro aspecto fundamental para o terapêutico, que é aquele cuidado, aquele esforço, que só pode ser executado pelo próprio indivíduo e que o permite direcionar-se para o que é melhor para ele mesmo. Privá-lo disso não pode ser considerado therapeia na acepção grega da palavra, embora por vezes chamemos isso inadvertidamente de terapêutico. Hoje podemos salvar alguém que infarta como nunca antes pudemos fazer, é verdade, porém, da mesma forma, hoje precisamos salvar uma quantidade de pessoas que infartam como nunca antes precisamos fazer. O que é então esse acerto, essa cura que tanto promovemos como fruto de nosso fazer técnico? O terapêutico pode ser objeto de domínio de um técnico? Afinal, qual o papel do terapeuta então?


Acredito que nem mesmo a pergunta sobre o que é terapêutico foi devidamente respondida, pois o que compreendemos sobre isso até então soa tão misterioso quanto seu questionamento. Contudo, há outros dois trechos de Aristóteles que nos permitem abrir um pouco mais o sentido de therapeia e, talvez com isso, também corresponder à reflexão sobre o papel do terapeuta.


Em Historia Animalium (1179a23) o filósofo nos informa que a ovelha poderá dar crias até os onze anos de idade “caso seja devidamente cuidada (therapeian)”. Em De Generatione Animalium (760a3), o termo therapeia e suas derivações aparecem ao se referir aos cuidadores de abelhas como “aqueles ocupados com os cuidados a essas criaturas”. Em ambos os casos therapeia parece assemelhar-se a um cultivar, a um cuidar que assegure as condições necessárias para que a natureza cumpra seu fluxo natural. Therapeia ganha assim um novo sentido, torna-se um cuidado que cultiva, que permite e garanta que a natureza siga seu curso e frutifique: que as ovelhas tenham crias; e que as abelhas produzam mel. Enquanto aquele que cuida e cultiva, o terapeuta parece justamente promover as condições necessárias para que aquele que é cuidado possa crescer e dar frutos em sua vida.


Pertence, portanto, o terapêutico ao tecnoterapeuta? Pertence a ele o terapêutico na mesma medida em que ao apicultor pertence o crescimento das abelhas e a produção de seu mel. Técnicas de cultivo podem ser utilizadas para tal fim, mas para que esse cuidadotherapeia – não se torne exploração, há de se resguardar o crescimento daquele que é cuidado, cultivado nessa therapeia. O terapêutico, portanto, abre-nos para aquele tipo de cuidado direcionado a alguém em especial, a alguém com um nome – como Cálias, ou Sócrates, ou eu e você – que, resguardando seu livre crescimento, ofereça as condições necessárias para que essa pessoa possa contemplar o seu bem agir, e ao fazê-lo, colocar-se à serviço do que é o melhor para si mesmo e honrá-lo. A essência do que é terapêutico, se pudermos pensar dessa maneira, envolve uma via de mão dupla, a ver, do que cuida, cultiva, trata, e do que é cuidado, cultivado, e tratado. Nesse caminhar sincronizado encontram-se os dois justamente na contemplação, onde, vislumbrando o bem agir, ambos colocam-se à serviço do sumo bem. Ambos tornam-se, assim, terapeutas.

 
 
 

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